29.1.20

O cinza das rosas


Cuidei delas com carinho. Toda tarde, namorava os botões dourados de fim do dia, à espera de uma explosão de pétalas e cores. O vento sacudia o caule e eu morria de medo de que elas se desmanchassem de repente. Podei muitas vezes seus excessos. Molhei a terra seca em meados de agosto, tempo em que a chuva se esquece da gente, deixando tudo nublado de poeira.

Mas foram aqueles meninos, os piores vilões da rua, sórdidos e invencíveis, que puseram fim ao meu poema maior. A rechonchuda invadiu o jardim num chute certeiro, num arremesso feroz, atingindo em cheio minhas bailarinas.

Tudo aconteceu bem diante dos meus olhos. As flores, amassadas, agonizaram no chão. E, por cima, lá estava ela, aquela assassina horrorosa. Nem foi preciso chamar os agressores. Três caras lavadas apontaram nas frestas do muro. Um deles perguntou se uma bola havia caído por ali.

Apenas abri o portão e os deixei entrar. Sem dizer uma só palavra, apontei o estrago, cobrando, com o silêncio e o choro contido, explicações para tanta maldade. Eu estava tão triste que os garotos notaram meu jeito.

O mais jovem retirou a bola de cima das roseiras amarrotadas. Sobrou apenas um botão. A bola não se machucou. Os espinhos não se defenderam, pois ainda não tinham aprendido a guerrear.

Os meninos foram embora sem dizer nada. Nunca me esqueci daquele dia em que minha paz foi ameaçada.

Pedro Antônio de Oliveira

26.1.20

Para a vida toda


Eu tenho uma amiga que garante que sou para ela uma espécie de mago-professor. Não me lembro direito de uma porção de coisas que ela me conta, mas deve ser tudo verdade. Afinal, ela tem uma memória de elefante nerd: guarda as datas de aniversário de todo mundo e decorou dezenas de letras em inglês de seus cantores favoritos. Pra mim, isso é uma proeza.

Uma de suas mais valiosas lembranças é que eu teria ensinado a ela a amarrar o cadarço do tênis. Aquele lacinho passando engenhosamente um dentro do outro, formando uma borboletinha. Algo sublime, ela garante, porque sempre sonhou em amarrar o calçado sem a ajuda dos outros, e nunca conseguia. Ora veja, que bobagem sem fim (pra mim). Pra ela, não! Porque ela, logo que venceu esse desafio, sentiu-se mais livre do que se tivesse experimentado um voo de paraglider sobre o Atlântico. Mais que isso, parecia ter se tornado a própria asa delta sobre o mar.

Segundo essa minha amiga, também a teria ensinado a andar de bicicleta, a jogar damas, videogame... e mais uma porção de coisas simples e incríveis. E a primeira vez que foi ao teatro, a um show de patinação no gelo, trem fantasma e ao circo, adivinhe quem a convidou?

Pois bem, essas primeiras vezes também guardam algo de recíproco. O meu primeiro engasgo quase mortífero com pipocas foi ao lado dessa amiga. Imagine nós dois debaixo da mesa da cozinha, numa folia maluca, quando uma sapeca pipoquinha travou meu fôlego, querendo acabar com a festa.

Quase caminhei por aquele túnel branco resplandecente, com uma luz na ponta, o qual todo mundo assegura que vê quando se está à beira do além. Eu pulei feito uma legítima pipoca de panela. Fui ficando roxo, roxo... e me arrastei até o filtro, implorando por água e ar. E minha amiga, gente, delirando de rir. Ela nem esticou o braço para me salvar.

Depois que o pânico da morte passou, ela só conseguia enxugar as lágrimas da convulsão de risos. Eu devia ter riscado seu nome da minha lista de amigos com uma caneta esferográfica vermelha, mas ela é tão especial, tão amiga que...

Pedro Antônio de Oliveira

16.1.20

Saudade


Que saudade
tenho de nascer.
Nostalgia
de esperar por um nome
como quem volta
à casa que nunca ninguém habitou.
Não precisas da vida, poeta.
Assim falava a avó.
Deus vive por nós, sentenciava.
E regressava às orações.
A casa voltava
ao ventre do silêncio
e dava vontade de nascer.
Que saudade
tenho de Deus.

Mia Couto