30.12.18

A esperança é um ato de resistência. Resista

Foto: Tom Schneider/Efe

Você que de quando em vez chora à noitinha, na solidão da alcova. Você que se arrebenta no cumprimento das obrigações. Que perde um tempo danado desviando das dificuldades de todo dia.

Você que tem medo do arrependimento um minuto depois de tomar uma decisão. Você que esconde seu pavor de morrer só, de não ter onde cair morto, de lhe faltar um gato para puxar pelo rabo.

Você que ainda tem avós mas que pouco os vê. Que tem saudade da infância, que sente culpa por não telefonar mais seguido a seus pais. Você que já não tem pais e nem avós e quase só usa o telefone para pedir comida e responder que não, não quer assinar jornal nenhum.

Você que tem uma inveja inofensiva das pessoas que demonstram afeto. Você que queria ter mais irmãos, você que tem irmãos distantes, você que não tem irmão nenhum.

Você que ainda corta a carne no prato do filho ou da filha. Que tem criança pequena e conhece o medo doloroso de lhe faltar.

Você que se deu conta de que nunca será um astronauta, um campeão olímpico, um astro do rock. Que acha superficial e cínico quem defende que não se deve dar esmolas, quando a quem pede esmolas nada se faz para ajudá-lo a seguir outro caminho.

Você que olhou nos olhos de um mendigo e sentiu um calafrio em algum lugar insuspeitado da alma.

Você que sentiu culpa por estar ocupado demais para ouvir um amigo quando ele mais honestamente precisou falar.

Você que já passou horas deitado no sofá de barriga para baixo, cutucando com a unha a sujeira leve que pousa e se instala impertinente nas ranhuras do chão. Você que enxerga rostos nos desenhos dos ladrilhos. Que observou a poeira flutuando contra a luz do sol e lembrou de um amor antigo. Você que não sabe lidar com um amor novo.

Você que, no mais das vezes, das conversas do dia a dia não ouve nada senão relinchos, cacarejos e conversas para boi dormir entupidas de preconceito e burrice.

Você que já se perguntou onde repousam as borboletas, enquanto imaginava sua vida secreta, e esse foi seu único instante de paz no dia confuso. Você que descobriu espantado que as baratas, quando esmagadas pelo chinelo da gente, liberam ovos que se transformarão em novas baratas que sobreviverão à hecatombe nuclear.

Você que já pediu a Deus um tempo para viajar a um lugar distante e ver o sol nascer de outro canto, na tentativa honesta de lavar com sabão e esponja a sua alma cheia de borras e sentimentos esverdeados, envelhecidos. Depois estendê-la no varal de um dia inteiro e deixá-la ali secando ao sol.

Você que já teve a impressão de que, se não fizer alguma coisa, a vida periga se transformar em um eterno domingo à noite.

Você…

Seja bem-vindo. Bem-vinda. Dá cá um abraço. Viver dói e se dói é porque você vive. Resista, deixe estar.

E acredite: para cada angústia há uma desforra gloriosa, esperando sua vez de vir ao mundo.

André J. Gomes

Fonte: Revista Bula

29.12.18

Um abraço


Tenho sorte de ter olho para o encanto. De ver imagens nos estuques das paredes do muro. De ver o portal que dá lugar para minhas emoções esparramadas na grama verde e de poder viver o lambeijo dos meus cães quando deito no chão. De enxergar coração em tudo que é coisa. 

Tenho sorte porque lá fora, para além dos instantes de encanto, o mundo está de ponta-cabeça e não sei se você gostaria de vê-lo como se apresenta hoje. Talvez, aqui, no meu lugar seja um daqueles achadouros que você criava em seu mundo. 

O meu quintal é desabitado de realidade e levo ele na bolsa sempre que saio calçadas afora para viver o mundo real e lá, quando o baque vem em grau maior, eu retiro um pequeno bocado para sobreviver. 

O mundo está moderno demais e atravessado. Então, eu busco como escape essa inteireza de criança que meu pai ainda acha que sou e com isso tento dar verbo às coisas que me rodeiam e, bem ali, no cantinho do espaço imaginário, perto das lanternas chinesas, eu te abraço e agradeço pela inspiração que me ofereceu diante da palavra e, tentando entender a cor dos pássaros, faço o verbo esperançar renascer cada vez mais dentro de mim.

Mariana Gouveia

23.12.18

Noite feliz, noite de luz

Ilustração: Son Salvador

Os brilhos de dezembro se multiplicavam em cada vitrine. Luzes coloridas alegravam as ruas. Árvores de Natal disputavam entre si qual delas chamava mais a atenção. Àquela hora da noite, apesar da chuva que ameaçava cair, ainda era possível avistar pessoas caminhando apressadas com enormes embrulhos nas mãos.

Em incontáveis lares da cidade, pratos saborosos deviam estar sendo preparados, enquanto tudo, aos poucos, tentava se acalmar. A fúria das compras e o tromba-tromba nas esquinas iam dando lugar ao silêncio e a um desejo natalino de repouso e paz.

Foi então que um aguaceiro desabou sobre a metrópole. De repente, uma pesada cortina de chuva escondeu cada pisca-pisca, cada enfeite, envolvendo em seus braços molhados os prédios, os carros e as estrelas que pontilhavam o céu.

Debaixo do viaduto de uma imensa avenida, nenhuma luz colorida, nenhuma bola reluzente, nenhum pinheiro luzindo. Naquele lugar, não havia indício algum de Natal. Ao lado do amontoado de caixas de papelão, um enorme rio se formava por causa da enxurrada. Goteiras tilintavam dentro de algumas panelas vazias. Música de sino?

Diante da cidade encharcada e ocupada em festejos, um vibrante choro de criança vencia o barulho dos trovões e os clarões da tempestade. Mas essa mesma cidade, naquele instante, não sabia e nem podia ouvir nada.

No abrigo feito de papelão, nascia um menino, que talvez se chamasse Jesus da Silva, filho do José Romeiro da Silva e da Maria da Anunciação Silva, catadores de papel, caçadores de sonhos.

Nascia, sim, o Jesus da enorme cidade. Mais um Jesus sem presentes, sem árvores com luzes piscando ao seu redor, sem o perfume das deliciosas comidas. Era Natal e muitos na cidade nem sonhavam. A chuva ocultou o Jesus do viaduto e tantos outros mistérios daquela noite.

Mesmo sem um coral de anjos a entoar canções natalinas, mesmo sem uma estrela a guiar o futuro, para José, para Maria e para Jesus, era noite feliz.

Pedro Antônio de Oliveira

Conto originalmente publicado no jornal Diário da Tarde, em 23 de dezembro de 2000 

20.12.18

Sempre-viva

Foto: Eco Vida
sempre-triste
no seu jeito interiorano
tingida de fúcsia
e turquesa
diz que é tinta
diz que desde sempre era
tudo tudo tudo tinta
e o corpo diamantino
é palha seca

Angela-Lago

Foto: Folha Uol
Este poema lindo faz parte do livro "O caderno do jardineiro", Edições SM, da escritora e ilustradora Angela-Lago. Mineira de Belo Horizonte (minha terra querida), a autora nos deixou em 21 de outubro de 2017. Na ocasião, eu estava de férias em Fortaleza (CE), sol, calor, alegria... mas, de repente, fiquei triste, muito triste com a notícia. Sempre admirei a Angela por sua elegância ao esculpir as palavras e tocar nosso coração como a regente de uma orquestra de luzes. Nas estrelas, no infinito, nos confins do céu... de onde ela estiver, que continue nos inspirando com sua arte e sensibilidade.
Angela, de fato um ser humano especial.

Um beijo, Angel!

Pedro Antônio de Oliveira

SABOREIE ALGUMAS ENTREVISTAS DE ANGELA-LAGO


15.12.18

Fonte dos desejos


Lucinha quer ser fada.
Bailar na ponta dos pés,
se empinar esguia sobre uma nuvem,
deixar o vento conduzir seus passos
para longe de tudo.

Ser fada é uma coisa tão boa.
É quase, quase ser uma bailarina,
um facho de sol
furando a copa das árvores,
uma nota musical colorindo o silêncio,
um abraço no escuro,
iluminando a solidão.

Lucinha quer ser fada
só para visitar as estrelas
onde moram seus anjos preferidos,
também a vó Candy e seus bolinhos de chuva,
também o vô Olinto e seu acordeon multialegria.

Lucinha quer ser fada e voar de noite sobre a cidade,
acordar os desejos esquecidos,
curar a saudade e remendar os corações partidos
com afeto e sonho.

Pedro Antônio de Oliveira

12.12.18

O que importa


E eu paro e fico rindo, se é você.
Que mágica é essa que espanta toda a dor de viver?

Pedro Antônio de Oliveira

Para sempre


Não te deixes destruir… Ajuntando novas pedras e construindo novos poemas. Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça. Faz de tua vida mesquinha um poema. E viverás no coração dos jovens e na memória das gerações que hão de vir. 
Esta fonte é para uso de todos os sedentos. Toma a tua parte. 
Vem a estas páginas e não entraves seu uso aos que têm sede. 

Cora Coralina