29.8.20

Uma de minhas saudades


Minha avó amava aquela pilha de discos de vinil. Talvez, hoje, muita gente não faça a mínima ideia do que seja isso. Na lista de seus preferidos, havia um português que cantava o Carimbó e a saudade de sua terra. Um outro deixava vovó vidrada com sua música bonita sobre alguém sentado à beira de um caminho quase sem fim. Acho que a vó sentia muita falta do vô, quando escutava essa.

Ao voltar da escola, vovó cantava pra mim, batendo palmas: “Chegou o general da banda... ê... ê...! Chegou o general da banda... ê... a!”, da Elis, na maior alegria. Vovó, sempre musical. Ela também adorava rádio. Ficava abraçada a ele pelas longas horas da tarde.

Agora paro pra pensar e descubro que as canções pareciam um pouco a história dela. A vó passava horas ouvindo música. Pedia pra trocar o disco, repetir um e outro, ou desligar de repente, porque já estava cansada e queria puxar um cochilo.

Às vezes, tinha vontade de ouvir as minhas, bem na hora em que ela queria as dela. As pessoas diziam que eu era o santo da paciência. Mas, certa vez, me irritei porque vovó não deixava interromper seus LPs, e ainda botou defeito nos meus. Chateado, eu me tranquei no quarto, me fazendo de vítima.

De vez em quando, a vó recebia a visita de dona Maria. Antes de abrir a porta, eu penteava seus cabelos brancos, amarrotados de tanto ficar deitada. A vizinha chegava com intimidade de amiga. As duas conversavam e davam sonoras gargalhadas. Elas, quase da mesma idade, pareciam tão meninas, quando se juntavam para tagarelar. Era a luz da vida voltando a brilhar em seus olhos.

Se chovia forte, vovó mandava acender velas e todo mundo se reunia no quarto pra rezar. Confesso que aquelas orações me deixavam ainda mais apavorado, pois era sinal de que a tempestade estava feia.

Aos poucos, ela começou a arrastar devagarinho o chinelo pela casa. Com o tempo, era empurrada numa cadeira, uma espécie de carrinho de bebê para adultos. O fim se parece com o começo. Vamos desaprendendo um tanto de coisas e nos tornando mestres em outras. Os olhos ficam embaçados como um vidro suado de chuva.

Mamãe amassava o arroz com o feijão e preparava uma papinha, feito comida de neném. Mesmo assim, de vez em quando, ela engasgava. Era um deus-nos-acuda. Uma aflição! E, como toda criança, a cada dia, ela gostava mais e mais de ouvir histórias. Vovó não podia mais correr, não podia mais se arriscar pelo mundo. Tenho certeza de que era por isso que os livros pareciam aventuras reais que a levavam de volta para a emoção da vida.

Logo que ela começou a reclamar de umas fortes dores na barriga – e vovó nunca se queixava de nada –, alguma coisa me dizia: vêm aí dias cinzas e de silêncio. “Vó, quer que eu bote uma música?” – eu sugeria, lutando para afastar os maus pressentimentos. Ela não queria mais. Nem eu.

Os discos dela e os meus só voltaram a tocar naquela vitrola muito, muito tempo depois, quando a tristeza, distraída, ia sendo levada pelo tempo. Ficaram boas lembranças, coisas que os anos não conseguiram roubar de mim.

No dia em que vovó partiu, fui eu quem dei a notícia a dona Maria. Cheguei a cara na janela baixa da sala da casa dela e contei. Ela chorou, colocando as mãos no rosto, como se quisesse se esconder da pior dor do mundo.

Acho mesmo que os adultos devem renascer lá pelas terras da esperança, um horizonte iluminado por um sol feliz e amarelo, arco-íris, gramado aparadinho pra deitar e rolar, sem contas, sem fila, sem gripe, sem nada de ruim pra nos chatear.

Eu tenho muitas fotos da vovó. Todas alegres. Na caixa de recordações, lá estou eu, bem pequeno, zanzando pelo quintal, quietinho no colo dela ou posando nos dias de festa.

Já sonhei com ela várias e várias vezes. Em uma delas, a gente viajava num trem a vapor, por uma estrada cheia de curvas. Outra vez, eu visitava a vó num prédio bem alto. Subi centenas de degraus sem, ao menos, me cansar, uma sensação esquisita, como se estivesse escalando uma montanha para tocar uma estrela. Será?

Pedro Antônio de Oliveira

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