24.12.20
Feliz Natal!
17.12.20
Nadador
10.12.20
Poema do beco
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
Escapulário
8.12.20
Bicho encantado
Repenso o mundo
19.11.20
Invisivelmente, amor
12.11.20
Todas as manhãs
2.11.20
Sem barreiras para a leitura e a imaginação
31.10.20
Plenitude
De não precisar de mais nada
De estar sempre a gingar
Numa rede presa à Lua.
Pedro Antônio de Oliveira
25.10.20
Além do viver
19.10.20
Breu
12.10.20
Haverá quem duvide...
Que seu coração volte a se lembrar
14.9.20
A primeira vez da idade
1.9.20
Tecelã
30.8.20
A menina dos potes de mel
Ela caminhava como uma estrela sozinha, deixada para trás pelos irmãos mais velhos. O sol era tão forte que, de vez em quando, ela parava um pouco à sombra de uma castanheira para limpar o suor que banhava a pele jovem de menina.
A doçura daquela missão tinha muito a ver com os potes de mel que vendia. Tudo era produzido pelo pai, ferroviário, no quintal de sua casa. A mãe era tecelã, uma zelosa dona de casa com seus seis filhos. O pai, por força da necessidade, logo se revelou um habilidoso regente de uma orquestra feita de ouro. Passeava entre os caixotes de abelhas como quem protegia crianças num berçário.
A filha mais nova se esforçava para convencer seus potenciais clientes.
– É ótimo para curar gripe, garganta inflamada, tosse e nariz escorrendo – dizia a garota completamente vermelha da quentura do meio da tarde. Tão pequena ainda, mas tão determinada a se tornar uma vendedora de respeito. Às vezes, botava os potes dourados no chão para conseguir escalar a ladeira.
– Compra, compra de mim um pote de mel. É muito bom para a saúde, curar chieira no peito, fortalecer menino que nasceu franzino e desgrudar pigarro esfolando a goela.
Não havia quem não se comovesse ao ver aquela mocinha frágil, custando a carregar a saborosa mercadoria, arrastando seus chinelos velhinhos sobre a terra grosseira.
– Quando a gente está quase gripando, minha mãe derrete bastante mel no leite quente, mistura umas folhas verdes e dá esse chá pra gente beber.
Animados, os crédulos fregueses perguntavam:
– É mesmo? E vocês melhoram?
E com a transparência de um pequeno anjo esquecido na Terra, ela respondia:
– Ah... nada!
Arrancando risos de todo mundo, diante de tamanha sinceridade, a jovem vendedora ia colecionando sorrisos de estranhos pelo caminho, enquanto via, um a um, os potes de mel desaparecendo da sacola. Ela voltava para casa com os bolsos cheios de dinheiro, na certeza de ter vendido muito mais que a doçura daquele néctar dos deuses, ao distribuir de brinde a leveza e a inocência da infância.
(Esta é uma história verdadeira. Minha mãe é a menina dos potes de mel.)
Pedro Antônio de Oliveira
29.8.20
Uma de minhas saudades
Minha avó amava aquela pilha de discos de vinil. Talvez, hoje, muita gente não faça a mínima ideia do que seja isso. Na lista de seus preferidos, havia um português que cantava o Carimbó e a saudade de sua terra. Um outro deixava vovó vidrada com sua música bonita sobre alguém sentado à beira de um caminho quase sem fim. Acho que a vó sentia muita falta do vô, quando escutava essa.
Ao voltar da escola, vovó cantava pra mim, batendo palmas: “Chegou o general da banda... ê... ê...! Chegou o general da banda... ê... a!”, da Elis, na maior alegria. Vovó, sempre musical. Ela também adorava rádio. Ficava abraçada a ele pelas longas horas da tarde.
Agora paro pra pensar e descubro que as canções pareciam um pouco a história dela. A vó passava horas ouvindo música. Pedia pra trocar o disco, repetir um e outro, ou desligar de repente, porque já estava cansada e queria puxar um cochilo.
Às vezes, tinha vontade de ouvir as minhas, bem na hora em que ela queria as dela. As pessoas diziam que eu era o santo da paciência. Mas, certa vez, me irritei porque vovó não deixava interromper seus LPs, e ainda botou defeito nos meus. Chateado, eu me tranquei no quarto, me fazendo de vítima.
De vez em quando, a vó recebia a visita de dona Maria. Antes de abrir a porta, eu penteava seus cabelos brancos, amarrotados de tanto ficar deitada. A vizinha chegava com intimidade de amiga. As duas conversavam e davam sonoras gargalhadas. Elas, quase da mesma idade, pareciam tão meninas, quando se juntavam para tagarelar. Era a luz da vida voltando a brilhar em seus olhos.
Se chovia forte, vovó mandava acender velas e todo mundo se reunia no quarto pra rezar. Confesso que aquelas orações me deixavam ainda mais apavorado, pois era sinal de que a tempestade estava feia.
Aos poucos, ela começou a arrastar devagarinho o chinelo pela casa. Com o tempo, era empurrada numa cadeira, uma espécie de carrinho de bebê para adultos. O fim se parece com o começo. Vamos desaprendendo um tanto de coisas e nos tornando mestres em outras. Os olhos ficam embaçados como um vidro suado de chuva.
Mamãe amassava o arroz com o feijão e preparava uma papinha, feito comida de neném. Mesmo assim, de vez em quando, ela engasgava. Era um deus-nos-acuda. Uma aflição! E, como toda criança, a cada dia, ela gostava mais e mais de ouvir histórias. Vovó não podia mais correr, não podia mais se arriscar pelo mundo. Tenho certeza de que era por isso que os livros pareciam aventuras reais que a levavam de volta para a emoção da vida.
Logo que ela começou a reclamar de umas fortes dores na barriga – e vovó nunca se queixava de nada –, alguma coisa me dizia: vêm aí dias cinzas e de silêncio. “Vó, quer que eu bote uma música?” – eu sugeria, lutando para afastar os maus pressentimentos. Ela não queria mais. Nem eu.
Os discos dela e os meus só voltaram a tocar naquela vitrola muito, muito tempo depois, quando a tristeza, distraída, ia sendo levada pelo tempo. Ficaram boas lembranças, coisas que os anos não conseguiram roubar de mim.
No dia em que vovó partiu, fui eu quem dei a notícia a dona Maria. Cheguei a cara na janela baixa da sala da casa dela e contei. Ela chorou, colocando as mãos no rosto, como se quisesse se esconder da pior dor do mundo.
Acho mesmo que os adultos devem renascer lá pelas terras da esperança, um horizonte iluminado por um sol feliz e amarelo, arco-íris, gramado aparadinho pra deitar e rolar, sem contas, sem fila, sem gripe, sem nada de ruim pra nos chatear.
Eu tenho muitas fotos da vovó. Todas alegres. Na caixa de recordações, lá estou eu, bem pequeno, zanzando pelo quintal, quietinho no colo dela ou posando nos dias de festa.
Já sonhei com ela várias e várias vezes. Em uma delas, a gente viajava num trem a vapor, por uma estrada cheia de curvas. Outra vez, eu visitava a vó num prédio bem alto. Subi centenas de degraus sem, ao menos, me cansar, uma sensação esquisita, como se estivesse escalando uma montanha para tocar uma estrela. Será?
18.8.20
Não me canso de sonhar com dias assim
10.8.20
Desde que o samba é samba
1.8.20
Meu ideal seria escrever...
Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada como o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má-vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.
Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera, a minha história chegasse – e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário (autoridade policial) do distrito (divisão territorial em que se exerce autoridade administrativa, judicial, fiscal ou policial), depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aquelas pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse – “por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!” E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.
E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa (habitante da antiga Pérsia, atual Irã), na Nigéria (país da África), a um australiano, em Dublin (capital da Irlanda), a um japonês, em Chicago – mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: “Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou (introduziu-se lentamente em) por acaso até nosso conhecimento; é divina.”
E quando todos me perguntassem – “mas de onde é que você tirou essa história?” – eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: “Ontem ouvi um sujeito contar uma história...”
E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.
21.7.20
Bicicleta
21.6.20
Um poema
3.6.20
O grande erro
Eu juro que nunca fui um garoto violento. Pra ser sincero, na escola sempre estive mais para saco de pancadas do que mesmo para um facínora desalmado. Mas, quando vi, já estava dando um soco no nariz daquele menino que não conhecia e de quem nunca senti raiva na vida.
Lembro que ele estava mexendo com as meninas no corredor, antes de começar a aula. Daí, uma delas pediu que eu "desse um jeito" naquele chato. Foi quando o empurrei e apliquei o golpe bem no rosto dele, um nocaute. Ele não reagiu. Apenas levou a mão ao nariz, provavelmente sentindo o calor do sangue a escorrer pela face. Jamais me esqueci daquela cena. Eu me senti um covarde, um verdadeiro pusilânime, principalmente porque o menino não revidou.
Aquilo não era uma briga nem era uma disputa. Não houve provocações, a história não era comigo. Pra que fui cometer aquela besteira? Aposto que doeu mais em mim do que nele. As meninas comemoraram meu gesto heroico, como se eu fosse um vencedor. Vencedor? Vencedor de nada! Se eu pudesse, voltaria no tempo. Creio que meninos sejam todos assim, incongruentes, estranhamente cruéis sem necessidade: sempre que encontram alguém mais fraco, tentam dominar, mesmo um sujeito como eu, uma verdadeira mosca morta para assuntos de guerra. Apanhar dói menos, infinitamente menos, concluí.
Devia ter pedido desculpas, dito a ele que tudo foi um engano, uma insanidade, que eu estava arrependido. Ou, quem sabe, oferecer meu nariz para que ele também pudesse dar um socão. Não fiz nada disso. Outra vez fui um fraco; outra vez, um perdedor.
Anos mais tarde, eu já seria adulto. Uma garota grávida, que conheci menina dos corredores do colégio, pregaria seus olhos em mim, descuidadamente. A seu lado, um rapaz, um velho conhecido meu. Ele me olharia profundamente, segurando um cachorrinho felpudo em plena manhã luminosa. Dizem que pra gente sempre se lembrar de alguém, mesmo que os anos se passem, basta fixar a atenção nos olhos. O olhar permanece igual. Tive a certeza disso. Era minha vítima, a do soco. Eu, o agressor, teria uma segunda chance: pedir desculpas.
Meu coração bateria acelerado e eu me apresentaria. E ele se lembraria. E sorriria impressionado por eu ainda me recordar daquele dia, daquela cena. E ele aceitaria meu pedido de perdão e trocaríamos um aperto de mãos. E ficaríamos amigos. Uma amizade adiada em muitos anos.
Esta é uma história real que ainda espera por um final, de preferência feliz. Se eu esbarrar outra vez com minha vítima, não vou deixar escapar de novo a oportunidade de reparar meu grande erro. E aí, eu conto aqui pra você. Prometo.
24.5.20
Cadê você mesmo?
Seus olhos não eram assim os de uma vilã. E sua voz meio adocicada fazia cócegas nos meus ouvidos. Tão gostoso que me dava vontade de ouvir tudo o que ela queria me dizer. Não importa quanto tempo isso levasse. Pena que alguns vazios não se curam com música.
Não conseguia sentir raiva dela. Só um pouquinho de assombro. Ela me apareceu num dia triste. Acho um absurdo os dias tristes se parecerem com dias de verão, de céu azul e sol luzindo. Dias tristes deveriam ter, no mínimo, temporal com raios, vento gelado e pessoas metidas em suas casas.
Saudade era uma menina. O nome dela não era Verônica, nem Catarina nem Carolina. Era Saudade.
– Se você achar estranho, pode me chamar de Aluana – ela sugeriu.
– Aluana?
– Hum-hum. É uma mistura de A Lua + Ana. Sempre achei bonito.
Eu disse para Saudade ou Aluana que ela era cruel, esbanjando aquele sorriso todo num dia em que eu não estava bem. Ou era deboche? Mas falei isso sem mágoa porque ela possuía um frescor que ia muito além do balanço que tinha nos cabelos.
– Eu não sou malvada. Veja! Eu pareço um monstro?
O pior é que não parecia mesmo. Linda, nem ruiva nem morena, apenas uma menina.
– Garoto, deixa de ser bobo. Vou te mostrar uma coisa que você vai amar.
– Garoto? Eu já sou um adulto. Não sou mais menino.
– Você está enganado.
– Não, não estou não. Olhe pra mim.
– Estou olhando, ora!
– Então, não vê que já sou velho, que já vivi uma porção de histórias tristes?
Aluana tirou de sua bolsinha prateada um espelho, que ficou gigante de repente.
– Observe você mesmo. É assim que você é.
Minha surpresa foi tão grande que só faltei desmaiar.
– Me diga com o que se parece? Com um vovô gagá?
Incrível, minha aparência era a de um garotinho. Um menino de sete, oito anos...
– Mas eu não sou essa criança aí.
– Pare com isso. Não sou eu quem está dizendo. É você quem se vê agora neste espelho – advertiu Aluana.
– Tem razão. Eu virei um menino – concordei.
– Errado. Você sempre foi esse menino.
20.5.20
I can feel it
21.4.20
Instituto Educacional Missão Paz promove encontro literário virtual sensacional!
Os estudantes do quarto ano do Instituto Educacional Missão Paz leram meu livro "Oreosvaldo, o Pássaro das Sombras" (Editora Lê) e participaram de um bate-papo eletrizante via internet no dia 15 de abril. Pena que não foi possível ir até a escola, conversar pessoalmente com a galerinha e abraçar todo mundo, como geralmente tenho o prazer de fazer. O momento agora é de se proteger contra a Covid-19 e manter o isolamento social. A professora Renata Moura foi quem comandou os trabalhos literários.
A garotada foi incrivelmente demais nas perguntas, no carinho e na interação! Permanecemos juntos por mais de uma hora, compartilhando ideias e nos divertindo muito.
Obrigado ao Instituto Educacional Missão Paz pela oportunidade! Fiquei muito feliz ao saber que os alunos gostaram das aventuras do nosso poeta e blogueiro misterioso, o Pássaro das Sombras! ♥
16.4.20
Penso nisso amanhã
2.4.20
Pedido
Obrigado, querida Angel!)
27.3.20
Aquele mundo mais bonito
pelo tempo afora,
quase nada serve para preencher uma imensidão?
Quase sem querer
14.3.20
Paragens e velhos mistérios
12.3.20
Escuridão?
Era uma daquelas tardes quentes e abafadas de março. Saí da escola louco para tomar o ônibus e chegar logo em casa. Já me preparava para atravessar uma avenida quando vi um casal de cegos. Tive dúvida: será que me ofereço para ajudá-los? A esquina era perigosa. Passavam veículos em alta velocidade. Resolvi me aproximar, porque senti um certo desconforto ao vê-los parados ali, na minha frente.
“Ei, vocês querem uma ajudinha?” O rapaz disse “sim”. A menina segurava seu braço. Formamos um trio simpático em plena tarde calorenta. “Mas eu acho que devemos esperar um pouco, porque o sinal está aberto para os veículos”, falei procurando ser divertido e familiar. O moço concordou com um “tudo bem” descolado e continuou o papo com a garota. Achei melhor assim. Daí, me senti mais à vontade. Isso durou só um segundinho, porque, no momento seguinte, pensei que pudesse estar atrapalhando o papo dos dois, sendo, digamos, um pouco intruso.
Esperei o sinal ficar verde para pedestres. Uma pequena dose de cautela não faria mal algum. Que graça tem virar boliche humano? E, depois, parecia que os dois não estavam assim, com tanta pressa.
Ao fim de uma pequena eternidade, o sinal fechou para os carros e começamos a travessia. O rapaz me segurou pelo braço. Parece ser essa uma boa tática dos deficientes visuais, porque você acaba indo à frente, e eles não se sentem presos, tendo alguém como referência para seguir o caminho.
Terminamos as duas faixas de avenida, e ele se despediu da moça, que disse que seguiria por outra rua. Não perguntei seu nome. Pensei ser intimidade demais. Ele quis saber onde eu estudava, e eu expliquei. O rapaz não fez comentários. Espero não ter soltado besteiras do tipo: “ah, minha aula é ali, naquele prédio azul do banco tal...”. Subimos conversando sobre os buracos na calçada. E ele concordou, contando que havia trechos ainda piores em outros pontos da cidade.
Eu, cheio de cuidados, e ele parecendo mais firme nos passos que eu. Falei que seguiria até mais à frente. E ele, que ficaria na próxima quadra. Caminhamos um bom tempo em profundo silêncio. Logo chegamos à tal esquina. E qual não foi meu espanto? Não precisei falar que havíamos chegado. Simplesmente, ele sabia. Então ele me agradeceu, largou meu braço e se virou, descendo a rua. “Vai com Deus”, me despedi.
Fiquei intrigado. Prossegui em direção ao ponto de ônibus, imaginando mil coisas. Talvez ele contasse os passos ou aguçasse a audição. Eu me lembrei do caso de uma senhora. Apesar de não enxergar, ela passava roupas com habilidade, sem se queimar ou estragar o tecido, segundo minha mãe.
Desatento, tropecei num paralelepípedo saliente e quase meti os joelhos no chão.
29.2.20
Por onde for
24.2.20
Uma história real sobre anjo
Descobri que tenho um anjo da guarda. Nas horas de aperto, dizem que é só chamar por ele.
Uma vez, na saída de um shopping, dois zonzos, meu primo e eu chamamos a atenção de meio planeta; ai que vergonha! Quase fomos atropelados. Sorte que eu o puxei pela camisa. O som da freada do carro foi horrível! Até hoje ecoa em meus ouvidos. Depois daquela façanha, com um pouquinho mais de treino, poderíamos facilmente seguir a profissão de dublê. Mas fiquei pensando... será que foi o anjo? Será que foi ele quem soprou no meu ouvido: “segura aí esse distraído ou ele vai quebrar umas costelas!”?
Quantas vezes, bem na hora de sair de casa, perdi minha carteira ou as chaves e, por isso, ficava um tempão procurando os objetos desaparecidos. Será que era o anjo me atrasando para evitar algum acidente ou assalto? Anjo faz isso? Bagunça a vida da gente pra nos livrar de apuros? Ou são simplesmente minhas trapalhadas? Dizem que se a gente não ligar pra ele, o coitado do anjo fica sem graça, se sente esquecido, pensando que não é importante e, daí, acaba dando no pé.
Um dia, quando ia pra escola, aconteceu algo também bastante esquisito, desta vez, esquisitíssimo. Era uma manhã dessas normais, após uma noite de muita chuva, em que os semáforos, alucinados, ignoravam a pressa dos carros e dos pedestres.
Quando percebi que o sinal de trânsito não estava funcionando direito, fiquei nervoso. Foi como se as lembranças do quase-atropelamento em frente ao shopping brotassem de novo na minha cabeça.
Depois de algum tempo, consegui atravessar uma das faixas e fiquei no canteiro central, esperando uma oportunidade pra me livrar daquela fria. O vento dos automóveis e o barulho dos motores me davam arrepios.
Alguns malucos aventureiros se arriscavam, tirando lasquinhas nos veículos, e os veículos tirando lasquinhas neles. Meu coração pulsava de medo, querendo fugir pela boca. Ao meu lado, um desconhecido puxou conversa e alertou: “Cuidado, garoto, não atravesse agora!”. Olhei pra ele e pensei: “quem é esse sujeito, meu Deus?”. Ele continuou: “Espere só um pouquinho. Logo a gente consegue atravessar com segurança. Eu morro de medo. Você não?”. Nem respondi, porque fiquei surpreso com aquele estranho falando comigo.
Bem, e foi assim que, após alguns segundos, cruzamos a via juntos. Fomos em silêncio pela calçada. Àquela altura do campeonato, já havia me acalmado. Até me esqueci do medo e troquei duas ou três palavras com o tal cara. Meu ônibus surgiu e me apressei pra não perdê-lo. Antes, resolvi me despedir do rapaz que atravessou comigo a avenida; afinal, ele tinha sido simpático.
O ponto estava lotado e não consegui mais avistá-lo. Entrei no lotação, passei pela roleta com o olhar fixo na multidão lá fora. O homem tinha desaparecido. Mas, como? Pra onde? Não havia outro ônibus no qual ele pudesse ter se metido. Não havia outra rua pela qual ele pudesse ter seguido.
O coletivo arrancou devagarinho e meu pensamento de novo se perdeu de espanto. Será que era ele, meu anjo da guarda dando sopa? De novo?
Curiosidade: Dizem que meu anjo da guarda se chama Haiaiel. É fácil descobrir. Existem muitos sites por aí que revelam quem é seu anjo da guarda, bastando informar a data de nascimento. O anjo Haiaiel confunde o mal e ajuda todos que querem se livrar de pessoas que praticam a maldade. Incentiva a ter garra e perseverança na luta em favor da paz e para alcançar os objetivos na vida. O influenciado por esse anjo será livre de perversidade ou negatividade. Ele trabalha para Deus com inteligência e coragem para superar a opressão e a servidão. Terá a proteção divina para tomar a decisão certa. Libertará os fracos e oprimidos superando as adversidades. Protege e leva à vitória, com braveza e coragem.
21.2.20
À sombra de um jatobá
16.2.20
Telhados de Paris
10.2.20
Só você vai entender
Uma abraço de coragem
1.2.20
O crime não compensa
Nunca suportei ver alguém ao meu lado mendigando cola. Esse meu coração de manteiga de garrafa ainda iria me botar em maus lençóis, era só questão de tempo. Bastava começar a prova e eu podia dar adeus ao sossego. A todo momento, chegavam papeizinhos e cochichos suplicando as respostas das questões. Todos com cara de cachorro que caiu da mudança e esfolou o focinho. Alguns, mais desesperados, só faltavam derramar lágrimas.
E foi assim que um belo dia a professora de Português descobriu que minha prova e a de uma protegida, leia-se: “coleguinha sanguessuga”, estavam identicamente iguais. Oh, céus! Que coincidência! Fiz cena de espanto misturada à de pobre coitado, vítima em último grau daqueles aproveitadores, embora estivesse tremendo de verdade.
A enfurecida mestra nos deu um minuto e meio para uma exibição de nossas técnicas de telepatia. Só assim, para eu me livrar da acusação de cola, já que nossas provas estavam perfeitamente cara de uma, focinho da outra, até na posição das vírgulas.
Eu poderia ter dito que éramos irmãos, digamos, quase siameses, e que por isso fazíamos tudo quase sempre igual, de tanta afinidade e frequência positiva de energias, mas não ia colar.
Fiquei triste porque todo o meu passado de glórias escorria pelo ralo. O que adiantou tanto esforço nos saraus de poesia, na peça de teatro e nas apresentações de trabalho, se havia me tornado oficialmente, em poucos minutos, um criminoso comum, um legítimo colador.
Ela ameaçou:
_ Então, por enquanto, os dois estão com zero. Se não aparecer o culpado, os dois fazem de novo a prova, OK?
OK nada. Estava num mato sem cachorro. Não tinha coragem de entregar a M. (prefiro assim, não citar o nome dela). Afinal, ela era minha amiga. E, no fundo, no fundo, eu também era culpado, porque poderia simplesmente ter me negado a passar a cola. Por estar sempre tão disposto a ajudar todo mundo é que acabei mantendo essa rotina criminosa em sala de aula. Por milésimos de segundo, fiquei com um pouco de raiva dela por ter me colocado naquela fria. Eu não precisava passar por aquilo.
_ E aí? Vão permanecer calados?
Meu coração disparou. Não estava acostumado a ouvir a professora falando naquele tom. Arrisquei e quebrei o silêncio:
_ Professora, eu não colei de ninguém, disse pausadamente, em tom forte, mistura de medo e raiva.
Minha colega, pivô de todo aquele tribunal de justiça, cavou minha liberdade:
_ Fui eu, professora. Eu errei. Pode me aplicar de novo a prova.
Ufa! Respirei aliviado. Que ironia! Uma cola me fez aprender a lição.
29.1.20
O cinza das rosas
Cuidei delas com carinho. Toda tarde, namorava os botões dourados de fim do dia, à espera de uma explosão de pétalas e cores. O vento sacudia o caule e eu morria de medo de que elas se desmanchassem de repente. Podei muitas vezes seus excessos. Molhei a terra seca em meados de agosto, tempo em que a chuva se esquece da gente, deixando tudo nublado de poeira.
Mas foram aqueles meninos, os piores vilões da rua, sórdidos e invencíveis, que puseram fim ao meu poema maior. A rechonchuda invadiu o jardim num chute certeiro, num arremesso feroz, atingindo em cheio minhas bailarinas.
Tudo aconteceu bem diante dos meus olhos. As flores, amassadas, agonizaram no chão. E, por cima, lá estava ela, aquela assassina horrorosa. Nem foi preciso chamar os agressores. Três caras lavadas apontaram nas frestas do muro. Um deles perguntou se uma bola havia caído por ali.
Apenas abri o portão e os deixei entrar. Sem dizer uma só palavra, apontei o estrago, cobrando, com o silêncio e o choro contido, explicações para tanta maldade. Eu estava tão triste que os garotos notaram meu jeito.
O mais jovem retirou a bola de cima das roseiras amarrotadas. Sobrou apenas um botão. A bola não se machucou. Os espinhos não se defenderam, pois ainda não tinham aprendido a guerrear.
Os meninos foram embora sem dizer nada. Nunca me esqueci daquele dia em que minha paz foi ameaçada.
26.1.20
Para a vida toda
Eu tenho uma amiga que garante que sou para ela uma espécie de mago-professor. Não me lembro direito de uma porção de coisas que ela me conta, mas deve ser tudo verdade. Afinal, ela tem uma memória de elefante nerd: guarda as datas de aniversário de todo mundo e decorou dezenas de letras em inglês de seus cantores favoritos. Pra mim, isso é uma proeza.
Uma de suas mais valiosas lembranças é que eu teria ensinado a ela a amarrar o cadarço do tênis. Aquele lacinho passando engenhosamente um dentro do outro, formando uma borboletinha. Algo sublime, ela garante, porque sempre sonhou em amarrar o calçado sem a ajuda dos outros, e nunca conseguia. Ora veja, que bobagem sem fim (pra mim). Pra ela, não! Porque ela, logo que venceu esse desafio, sentiu-se mais livre do que se tivesse experimentado um voo de paraglider sobre o Atlântico. Mais que isso, parecia ter se tornado a própria asa delta sobre o mar.
Segundo essa minha amiga, também a teria ensinado a andar de bicicleta, a jogar damas, videogame... e mais uma porção de coisas simples e incríveis. E a primeira vez que foi ao teatro, a um show de patinação no gelo, trem fantasma e ao circo, adivinhe quem a convidou?
Pois bem, essas primeiras vezes também guardam algo de recíproco. O meu primeiro engasgo quase mortífero com pipocas foi ao lado dessa amiga. Imagine nós dois debaixo da mesa da cozinha, numa folia maluca, quando uma sapeca pipoquinha travou meu fôlego, querendo acabar com a festa.